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No fundo do mundo está a Palavra: Martinho Lutero por Michael Laffin

Aprendendo a provar a Palavra de Deus com Martinho Lutero

Há muitas boas razões para ler Martinho Lutero, especialmente neste ponto da história quando estamos celebrando o aniversário de quinhentos anos das suas célebre teses pregadas na porta do castelo em Wittenberg. Lutero é evidentemente uma figura histórica de suma importância, um grande formador da língua alemã e um grande teólogo, cada um desses sendo uma boa razão para lê-lo. Mas a coisa mais importante que podemos aprender lendo Lutero hoje é o que pode acontecer quando colocamos a Palavra de Deus em primeiro lugar, até mesmo no nosso entendimento da vida pública. Para Lutero, a Palavra de Deus é a realidade fundamental de que todo o resto se segue. E isso inclui a realidade tangível, material. A criação, para Lutero, nomeia o tempo e o espaço que é sustentado pela presença pessoal contínua da Palavra, que cumpre o que ela diz. Mesmo os pássaros e peixes “não são nada senão nomes na regra divina da linguagem”, como ele coloca de forma tão bela em suas Palestras em Gênesis. É essa ênfase na primazia da Palavra eficaz que Oswald Bayer chama de “a descoberta da Reforma” de Lutero.

Essa descoberta moldou a minha relação de aprendiz com Lutero, uma relação que forneceu uma tutoria contínua sobre o que realmente significa ter fé na Palavra de Deus. Eu descobri Lutero no contexto britânico (embora eu seja da América do Norte). Eu estava buscando aprofundar a formação teológica que eu recebi aprendendo sobre a importância histórica da liturgia para como a igreja se entende em relação ao mundo político. Com um desejo de permanecer fiel à confissão protestante, mas com grande hesitação sobre como isso poderia ser possível, Lutero me mostrou o caráter promissor do protestantismo e formas de continuar a viver e pensar consistentemente com as convicções centrais da Reforma à luz dos desafios e oportunidades do nosso tempo. Eu tenho de admitir que alguns dos meus primeiros encontros com o reformador foram frustrantes. A sua polêmica notoriamente forte, seu aparente desdém por seus inimigos e o que eu (arrogantemente, em retrospecto) considerava a qualidade inferior, como se fosse meramente para escola dominical, da sua escrita me distanciaram dele. E então, quando se tratava de política, eu achava que ele simplesmente não entendia como o mundo funciona.

Lutero escreve uma teologia rigorosa, exigente, mas sempre com um olhar para o que vai realmente servir à igreja que ele encara no púlpito e na sala de aula a cada semana.

Mas quanto mais eu lia, mais eu percebia que Lutero era quem tinha um entendimento bem maior e mais profundo e que era eu quem precisava aprender. Onde eu colocava o mundo e as forças históricas dentro do mundo como primários (embora eu o negasse naquela época), ele colocava a Palavra de Deus. Rapidamente ficou óbvio para mim que ele via bem mais longe do que eu. A sua preocupação pastoral de direcionar a teologia aos eventos reais diante de pessoas reais confiadas a seu cuidado, e a sua consciência aguda de qual palavra teológica se encaixaria mais precisamente no contexto em que ele escrevia, revelava o olhar diferente, e mais claro, com que Lutero via o mundo. Ele podia ver o mundo tão claramente porque a sua fé ia até o fundo das coisas de uma maneira que a minha não ia (e ainda não vai). Lutero escreve uma teologia rigorosa, exigente, basta checar as suas disputas e muitas das suas palestras mais tarde na sua carreira, mas sempre com um olhar para o que vai realmente servir à igreja que ele encara no púlpito e na sala de aula a cada semana. Eu vim a ter uma consciência crescente do poder da recusa de Lutero de ver qualquer coisa mais básica por detrás da Palavra de Deus e na sua insistência de que é o encontro da Palavra com o mundo que no final das contas dá forma a este. Essa convicção explica a centralidade da pregação na vida e ensino de Lutero, e o seu desejo ardente de que aqueles confiados a ele tivessem encontros reais com a Palavra viva. Há uma audácia incrível nisso que pode ser perdida na sua aparente simplicidade. Talvez seja a essa simplicidade concentrada que Tiago nos exorta (Tg 1.8; 4.8).

Em segundo lugar, eu aprendi muito de Lutero sobre o próprio significado da “Palavra de Deus”. Eu acho que é aqui onde cristãos modernos, especialmente aqueles de formação protestante, ou, no meu caso, evangélica norte-americana, ainda tem muito a ganhar desse santo amigo e portador de sabedoria antiga. O distintivo do luteranismo neste ponto é a convicção de que Cristo está realmente presente na Palavra pregada e nos sacramentos. Aprender porque isso é tão crucial e inegociável para Lutero se provou imensamente instrutivo para mim. Para ele, os sacramentos não são algo que se soma à Palavra pregada, mas sim são outra forma da Palavra: eles são a Palavra visível. Essa convicção serve para focar e direcionar a atenção da comunidade reunida em culto. O local primário para o encontro com o Cristo presente é a igreja, onde Deus atua a criação de uma nova humanidade a partir desse encontro com a Palavra ressurrecta. Então, para Lutero, de uma forma que nem sempre foi verdade para aqueles que reivindicam seguir os seus passos, a localização eclesiástica da leitura e interpretação da Escritura é central e necessária. Lutero espera que o nosso encontro com a Palavra seja primariamente localizado dentro da igreja reunida para ouvir a Escritura pregada e provar a Palavra nas suas línguas enquanto participa dela na Ceia do Senhor. Não podemos interpretar corretamente a Escritura se virmos a ela dentro e por meio de a comunhão dos santos. Para Lutero, essa comunhão também inclui os santos do passado, a quem ele se refere tão frequentemente na sua exposição da Escritura. Até aí, todavia, a Palavra retém a posição de autoridade, não a comunhão do santos. Eu acho que é isso que Lutero queria dizer quando escreveu: “os escritos de todos os santos pais devem ser lidos somente por um tempo para que por meio deles possamos ser levados às Escrituras … Os nossos queridos pais queriam nos levar às Escrituras pelos seus escritos”. Precisamos ler a Escritura junto com a grande nuvem de testemunhas enquanto nos sentamos ao lado deles sob a tutela das Escrituras. A igreja não autoriza a Escritura, mas sim a Escritura, como uma forma da Palavra de Deus, cria a igreja ao criar e chamar os santos (daí a insistência de Lutero de que a igreja é uma creatura verbi, uma criatura da Palavra). Novamente, a Palavra é básica e dá ordem à vida eclesial que ela tanto cria quanto sustenta. Há uma grande libertação nisso, dada a tendência em muitas igreja hoje de pensar que o que mais precisamos agora são programações novas e melhores e formas mais eficazes de atrair e entreter. Lutero, pelo contrário, nos exortaria a confiarmos na Palavra, colocá-la no centro, proclamá-la corajosamente e recebê-la regularmente no pão e no vinho. Em tal caso, o que se segue será obra da Palavra, não nossa. Sobre o surgimento e crescimento da Reforma, ele escreve num sermão de 1522: “eu simplesmente ensinei, preguei e escrevi a Palavra de Deus; fora isso, não fiz nada. E, enquanto eu dormia, ou bebia a cerveja de Wittenberg com os meus amigos Filipe e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu tanto o papado que nenhum príncipe ou imperador jamais lhe infringiu tantas perdas. Eu não fiz nada, a Palavra fez tudo”.

A lógica subjacente a esse movimento, pelo qual a Palavra eficaz de Deus cria a igreja, estende externamente, segundo Lutero, para as instituições sociais da família, governo e economia. Ele articula isso em termos do seu ensinamento sobre os três estados ou instituições: a politia (governo), a oeconomia (economia doméstica) e a ecclesia (igreja). Eu já discuti a última, mas ele também vê os outros dois estados como instituídos pela Palavra criativa de Deus, que promete nutrir, governar e cuidar da vida humana. Como tal, a Palavra molda a vida humana em suas formas materiais e institucionais. A vida social humana, de acordo com Lutero, é essencialmente uma questão das formações que se seguem da resposta humana a promessas divinas na Palavra, quer na forma de fé quer de incredulidade. Podemos dizer que, para Lutero, as sociedades humanas são o resultado do que as pessoas que as compõem acreditam em, a palavra a que atendem. E, portanto, ele está sempre nos empurrando de volta para a Palavra de Deus, como ele faz na sua obra O Magnificat, a fim de que “testemos e nos aventuremos nas Suas palavras”. Os escritos de Lutero podem ser visto como muitos encorajamentos a esses testes e aventuras decorrentes da fé na Palavra da promessa.

Dr. Michael Laffin é palestra em ética na Universidade de Aberdenn. A sua pesquisa se concentra em ética cristã e teologia política. Ele recentemente publicou um livro intitiulado The Promise of Martin Luther’s Political Theology: Freeing Luther from the Modern Political Narrative (Bloomsbury T&T Clark, 2016).

Original aqui.

Traduzido por Guilherme Cordeiro.