E VÓS quem dizeis que eu sou: “pronomes pessoais de preferência”, ética, linguagem e o evangelho
A pressão aumenta no campus, na esfera pública e na igreja: ou se usa o pronome que “afirme a identidade de gênero” de alguém ou se é considerado, na melhor das hipóteses, “ofensivo” ou até um preconceituoso intolerante, na pior das hipóteses. E, no contexto cristão, isso frequentemente é visto como dando um “passaporte” para afirmar o indivíduo com dificuldades trans ou então arriscar bloquear permanentemente uma “conversa sobre o evangelho” [hipoteticamente subsequente].
A questão é quase a seguinte: “se vocês, cristãos certinhos, ao menos tivessem a decência de usar o pronome de preferência da pessoa, então os portões dos céus se abririam sem demora”. Como devemos lidar com essa situação bem real e crescentemente proeminente? A questão do uso pronominal é meramente uma questão de gentileza e cortesia interpessoal?
Vamos começar com um experimento mental:
Se alguém chama o seu carro de “água” é uma coisa. Todavia, se ele colocar a “água” dele na garagem dele e fechar a porta, seguro em sua suposta autonomia noética de que a sua “água” está na garagem, o que vai acontecer quando ele reabrir a porta? Ele vai se deparar com uma poça?
É claro que não; chamar ou rotular um carro de “água” não quer dizer que ele se tornará líquido. Isso é confundir o rótulo linguístico com a coisa real. Rotular um carro de “água” não vai convertê-lo numa poça.[1] Da mesma forma, na verdade, há uma realidade subjacente quando se trata de sexo e reprodução em humanos, assim como há para todos os mamíferos e as outras espécies superiores. Cada célula no seu corpo, cada neurônio no seu cérebro é ou masculino (XY) ou feminino (XX) na sua composição genética. O seu corpo pode produzir ou óvulos ou espermatozóides. Nem palavras, hormônios ou bisturis podem mudar esses e muitos outros fatos objetivos e relacionados ao sexo sobre você que você não escolheu, que lhe foram entregues no primeiro instante em que você se tornou você: no instante da concepção.
Tom Wright explica a falha teológica central cometida quando se confunde um rótulo escolhido com a realidade autêntica:
Não somos, afinal, definidos por quaisquer anseios e aspirações que venham dos nossos corações, a despeito da retórica notável dos nossos tempos. Na área do bem-estar humano, esse é o caminho para a instabilidade radical; na área das crenças teológicas, isso leva ao gnosticismo (onde você tenta discernir a fagulha divina oculta encontrada dentro de você e, então, tenta ser autêntico com ela).[2] Chamar as coisas do jeito que se quer não é um ato cristão; na verdade, é um ato gnóstico e, portanto, pagão, que leva à instabilidade e impede o progresso humano. Tem mais coisa envolvida no uso de pronomes pessoais do que cortesia e gentileza.
Também vale a pena considerar a linguagem e o seu papel e uso em geral. A linguagem flui da Palavra[3] eterna, que é a Verdade[4] e não pode mentir.[5] Desse modo, a linguagem, quando usada por humanos, aqueles criados à imagem e semelhança desse Deus, deve ser utilizada para transmitir a verdade.
Contudo, e o que dizer sobre lidar com almas sofredoras lutando com (ou abraçando) a “disforia de gênero”? Usar o seu “pronome pessoal de preferência” deve ser visto como um ato tangível de amor pelo próximo? Não corremos o risco de “ofender” ou de impedir o contato associando o pronome ao sexo da pessoa? Como devemos pensar nisso na realidade cotidiana, onde pessoas reais importam?
Vamos deixar claro, primeiro, o que amar o próximo de alguém implica biblicamente. James K. A. Smith nos dá uma ideia excelente:
Se nós verdadeiramente amamos o nosso próximo, iremos dar testemunho à plenitude a que eles foram chamados. Se nós verdadeiramente desejamos o seu bem-estar, devemos proclamar a densidade das nossas obrigações morais que Deus ordena como as dádivas que nos canalizam até o florescimento e devemos trabalhar na esperança de que elas se tornem lei, embora com níveis apropriados de expectativa.[6]
Assim, na verdade, é falta de amor reforçar noções que detêm o florescimento de uma pessoa ou comprometem o dever moral a que Deus as chama. Não as ajudamos igualando erroneamente etiqueta com uma gentileza e amor calcados na realidade.
E vamos lembrar que “amar ao próximo” é penúltimo, não último. É o segundo maior mandamento. O primeiro também necessariamente afeta essa questão e esse mandamento demanda que primeiro amemos ao nosso Deus com todo o nosso ser, incluindo a nossa mente.[7] Isso significa, dentre outras coisas, que uma coisa definida por Deus precisa controlar uma coisa rotulada pelo eu. Os seres humanos, enquanto criaturas, recebem, isto é, discernem, não determinam[8] a descrição/interpretação do Criador da realidade, incluindo a realidade ética. Nomear erroneamente a realidade via preferências ou desejos pessoais falha em justificar essa nomeação errônea.[9] Como isso tudo se relaciona a interagir com um próximo “confuso em questões de gênero” que insiste que você use um pronome que desafia a realidade real do sexo dele ou dela? Aqui estão algumas reflexões.
Primeiro, pronomes pessoais se referem a pessoas reais e assim invocam e referenciam normas criacionais que estão associadas com pessoas reais, isto é, a realidade metafísica dessas pessoas. Os nomes, em contraste, são rótulos aplicados à realidade metafísica, não no seu fundo ou em sua essência, refletindo essa realidade em si: em outras palavras, no fundo, há homens e mulheres, mas não necessariamente Bob ou Toby ou Sam. Uma mulher que assume o sobrenome do seu marido, como é costume em algumas culturas, não deixa de ser uma mulher, nem o seu status metafísico muda quando o seu nome muda.
Um único nome, porque é um rótulo e não uma realidade metafísica, pode se referir a ambos os sexos, quer masculino quer feminino,[10] e uma pessoa pode possuir vários deles.[11] Os nomes, assim, são designados; o sexo simplesmente é. Ninguém nasce com um nome; nasce, todavia, com um sexo determinado e imutável. Pronomes pessoais necessariamente se referem ao sexo,[12] ao contrário de nomes, que podem ou não se referir.
Segundo, e desenvolvendo essa realidade, Deus criou a humanidade com uma complementariedade estabelecida, metafísica e binária chamada de “homem e mulher”.[13] Isso é o que a humanidade é na realidade e nenhum desejo existencial, preferência pessoal, camuflagem cosmética, infusão hormonal ou cirurgia de destruição de tecidos altera, ou pode alterar, essa realidade: essas técnicas só podem distorcê-la. Superficialmente, o sexo pode ser obscurecido superficialmente; ele não pode ser obliterado.
Terceiro, Jesus ensina que se tornar santo — santificado — flui de se aplicar uma verdade baseada em palavras.[14] Se, pelo contrário, emprega-se um pronome que nega a realidade, chamando um homem de “ela”, assim se suprime, obscurece ou obstrui os meios pelos quais uma pessoa confusa e machucada pode se tornar santa. Na verdade, o que acontece é que se está negando o remédio a um paciente em necessidade temendo que a ponta da agulha possa ser considerada “chata” ou “ofensiva”.
Quarto, o nono mandamento proíbe o falso testemunho, que, enquanto categoria, proscreve uma variedade de abusos linguísticos e comportamentais, todos enraizados na proteção da realidade real, ou falar a verdade. Uma tradição colocou dessa forma, no trecho relevante:
Os pecados proibidos no nono mandamento são: tudo quanto prejudica a verdade e a boa reputação de nosso próximo, bem assim a nossa […] resistir e calcar à força a verdade, […], falar a verdade inoportunamente, ou com malícia, para um fim errôneo; pervertê-la [a verdade] em sentido falso, ou proferi-la duvidosa e equivocadamente, para prejuízo da verdade ou da justiça; falar inverdades, mentir […][15]
A lei de Deus proíbe falar inverdades ou obstruir a verdade em todas as suas formas, inclusive chamando um homem de mulher. Como Paulo disse: “Seja Deus verdadeiro, e mentiroso todo homem, segundo está escrito: Para seres justificado nas tuas palavras e venhas a vencer quando fores julgado.”[16]
Quinto, embora a pessoa confusa frequentemente reivindique injustiça ou ofensa, observe a assimetria manipuladora da sua objeção. Eles buscam impor e sobrecarregar sobre a consciência de todos os outros. A pessoa confusa está insistindo que outros finjam que ele ou ela é um sexo diferente e que eles assim participem ou sejam cúmplices da confusão dessa pessoa. Aqueles que recusam empregar o pronome errado, por sua vez, não estão insistindo da mesma forma que a pessoa confusa use o pronome apropriado e baseado na realidade. Na verdade, essas pessoas estão simplesmente ficando do lado da realidade e da consciência e alinhando o seu vocabulário com essas escolhas, uma posição perfeitamente consistente com a liberdade e florescimento humanos, e uma ética cristã.
Sexto, observe que uma sexualidade apropriada sempre se relaciona com o casamento[17]enquanto composto por um homem e uma mulher. Isso estrutura e informa toda a narrativa bíblica: é a norma criacional; marca o primeiro milagre público de Jesus; e é a norma da consumação. O casamento por norma criacional e declaração divina é inerentemente e indispensavelmente binário sexualmente. Um pronome mal usado, a princípio, mina essa sociedade pré-política fundacional ao considerar tanto a história quanto a metafísica meros acidentes: a biologia se torna preconceituosa.[18]
E, sétimo, o uso apropriado dos pronomes se torna necessariamente “uma questão sobre o evangelho”. Paulo ensina que o casamento humano é um análogo a O casamento de Cristo, o Noivo (masculino) e a Noiva (feminino): para essa analogia funcionar, “masculino” e “feminino” precisam ser realidades metafísicas imutáveis, não meros construtos sociais exigidos pela ideologia de gênero ou preferência pessoal. Os pronomes “ele” e “ela”, assim, associam-se à realidade real; eles se conectam e se referem a normas criacionais imutáveis de “masculino” e “feminino”. É por isso que a ideologia de gênero mina a realidade e ataca os fundamentos da fé cristã: é uma questão sobre o evangelho. Como o arcebispo Chaput explica:
Ao desassociar o gênero da biologia e negar qualquer sentido dado ou “natural” à sexualidade masculina e feminina, a ideologia de gênero repudia diretamente à realidade. As pessoas não precisam ser “religiosas” para notar que homens e mulheres são diferentes. A evidência é óbvia. E a única forma de ignorar isso é por meio de um tipo de auto-hipnose intelectual. A ideologia de gênero rejeita qualquer experiência humana de conhecimento que vai de encontro a suas próprias premissas falhas; é a última geração do imperialismo da ciência ruim. Para os cristãos, também ataca o cerne da nossa fé: a Criação (“homem e mulher os criou”); a Encarnação, Deus assumindo a carne de um homem; e a Redenção, Deus morrendo na cruz e, após, ressuscitando em forma corpórea glorificada.[19]
Quem nós dizemos que as pessoas são? Elas são quem Deus, o Criador e Redentor, diz quem elas são: assombrosa e maravilhosamente feitas, dignificadas e dignas, refletindo exatamente a sua semelhança e sua imagem como macho e fêmea, ele e ela, Noivo e Noiva: tudo para a glória de Deus.
Traduzido por Guilherme Cordeiro.
[1] Ilustração do pensador e blogger britânico, Dan Moody, em 2016.
[2] N.T. Wright, The Day the Revolution Began, (New York, NY: HarperCollins Publishers, 2016), p. 398
[3] João 1.1.
[4] João 14.6.
[5] Números 23.19; para uma abordagem mais completa, veja Vern Sheridan Poythress, In the Beginning was the Word: Language, A God-Centered Approach (Wheaton, IL; Crossway, 2009).
[6] James K. A. Smith, Awaiting the King: Reforming Public Theology (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2017), p. 163
[7] Mateus 22.34-40.
[8] Comparar com Hb 5.14.
[9] E afirmar o erro de alguém nesse aspecto contribui para a sua supressão culpável da verdade. Ver Romanos 1.18-32.
[10] Lembre que a esposa do rei Davi, a filha de Saul, chamava-se “Mical” (1Sm 18). Outros exemplos contemporâneos [em inglês] incluem Pat, Shannon, Leslie, Fran, Robin, Ashley, et al.
[11] Pense nos nomes “alternativos” de Danuel e seus amigos no exílio babilônico. Eles tinham múltiploes nomes, mas só um sexo. Ou considere Saulo, mais conhecido como Paulo.
[12] Os defensores da ideologia de gênero reconhecem essa verdade, que é a razão de eles insistirem veementemente que outros usem os pronomes pessoais preferidos.
[13] Gênesis 2, afirmado por Cristo em Mateus 19: “desde o princípio”.
[14] João 17.17.
[15] Catecismo Maior de Westminster, Resposta à Pergunta 145: Quais são os pecados proibidos no nono mandamento?
[16] Romanos 3.4.
[17] P. Andrew Sandlin, The Christian Sexual Worldview: God’s Order in an Age of Sexual Chaos, (Coulterville, CA: Tim Gallant Creative/Publishing Buddy, 2015). [Edição em português: Cosmovisão sexual cristã: a ordem de Deus na era do caos sexual. Brasília: Editora Monergismo, 2017].
[18] E redefinir “masculinidade” e “feminilidade” como nada mais do que uma preferência quer dizer que “pais”, “mãe”, “pai” e “família” se tornam, ao invés de instituições pré-políticas naturais existentes, meros rótulos fluidos que se legitimam somente por meio do “faça-se” estatal. Poder, ao invés da natureza, determinaassim o status. Ver Nancy Pearcey, Love Thy Body: Answering Hard Questions about Life and Sexuality (Grand Rapids, MI: Baker Books Publishing 2018), 212-213
[19] Charles J. Chaput, Strangers in a Strange Land: Living the Catholic Faith in a Post-Christian World (New York, NY: Henry Holt and Company, 2017), p. 93.