RESUMO “CAPITAL MORAL” DE ROEL KUIPER
A Editora Monergismo acaba de publicar a obra “Capital Moral” do filósofo e ex-membro do Senado holandês, Roel Kuiper. O texto propõe uma abordagem sócio-filosófica da formação de Capital Moral a partir de uma perspectiva cristã reformacional.
Na introdução do texto, o autor aponta que no mundo moderno, tem-se uma crescente perda dos vínculos comunitários e sociais. A atomização dos indivíduos leva à desconsideração da necessidade que o ser humano tem de uma vida em comunidade. Em contraponto a isso, é necessário mais do que Capital Social (Robert Putnan, Jeffrey Alexander), posto que só busca criar vínculos comunitários que são, por sua vez, desprovidos de potencialidades morais internas. Para Kuiper, é preciso o desenvolvimento de Capital Moral, a saber, “a capacidade (individual e coletiva) de estar junto ao próximo e ao mundo de uma forma preocupada” (p. 24). Por meio de amor e lealdade, é preciso estabelecer relações morais substanciais que capacitem à criação e fortalecimento de vínculos comunitários. Para tanto, o escritor se propõe a discutir, filosófica e socialmente, o porquê e a forma de criar capital moral na esteira do pensamento reformacional (Althusius, Kuyper e Dooyeweerd) a partir dos conceitos de simbiose social, soberania das esferas, e conjunto encáptico.
A obra é dividida em três partes. Na primeira (cap. 1-4), faz-se um diagnóstico da modernidade quanto à fragmentação social. Na segunda parte (cap. 5-7), apresenta-se como o capital moral pode ser formado a partir da noção de pacto (não de contrato social). Na última parte (cap. 8-11), Kuiper expõe como o capital moral se estabelece. Pois bem, o autor explica (cap. 1) que a modernidade tem passado por uma ampla transformação devido à informatização, à globalização e à individualização. Somado a essa mudança, aglutinaram-se o tecnicismo e o materialismo. Disso resultou a perda dos valores civilizacionais do Ocidente, deixando os vínculos sociais mais líquidos, criando uma cultura da exclusão e uma perda de confiança entre os indivíduos.
Kuiper apresentará três aspectos da mentalidade moderna derivados dessas transformações. Em primeiro lugar (cap. 2), a utopia distorceu a responsabilidade moral presente por um ideal futuro. O esfacelamento dos valores e relações intersubjetivas levou à busca de utopias modernas, de conteúdo materialista e caráter totalitário. A partir disso, fomentou-se uma crença no progresso que permitiu projetos de engenharias sociais que, por sua vez, foram internalizadas ao imaginário e à moral dos indivíduos.
Ademais (cap. 3), à medida que a atomização prosseguia, houve uma perda de contato e um descompromisso moral entre os indivíduos e a coletividade. A ênfase na autonomia da razão trouxe uma noção de perceber a sociedade como objeto de racionalização, quebrando os vínculos morais intrínsecos às relações sociais. O individualismo resultante levou à centralização no sujeito e a consequente perda do ideal de bem comum. A pessoalidade humana foi relativizada, ao passo que o mundo se tornou instrumental, em um processo de coisificação para fins individualistas.
Com a radicalização do individualismo (cap. 4), houve uma profunda desconexão entre os indivíduos e a sociedade como um todo, transformando as relações humanas. Mais isolado, o indivíduo passou a ser mais compenetrado em si. Com a globalização, houve um afastamento dos indivíduos dos interesses e preocupações locais em troca de uma busca por interesses globais. A falta de vínculos comunitários ocasionou um vazio e perda de identidade individual e coletiva. A desconexão destruiu o Capital Moral.
Com efeito, face a esse cenário, Kuiper propõe que é preciso formar capital moral. Apesar de ter havido esforços nesse sentido, com o pensamento antiutópico de Calvino e Althusius (simbiose social e esferas de soberania) na era pré-moderna, o avanço da modernidade levou à quebra dos vínculos sociais. Em contrapartida, o autor propõe (cap. 5) perceber o homem como um ser que necessita de relacionamentos externos a si, de forma a estabelecer um diálogo de alteridade que seja preocupado-responsivo com seus pares, reencontrando a imagem de Deus na face do próximo. Para tanto, é preciso mais do que um contrato social, que por natureza é frágil e temporário, mas sim um pacto social que possibilite uma comunidade moral.
Porém, (cap. 6) como formar esse Capital Moral? Kuiper focaliza os contextos específicos de estruturas sociais. Em contramão à proposição sociológica moderna que busca criar capital social por meio de relacionamentos neutros, sem compromisso moral, o autor, a partir da filosofia de Herman Dooyeweerd, refletirá como estruturas sociais se ligam a práticas morais. Deve-se reconhecer que existem estruturas sociais naturais que independem da vontade pessoal (ex. família e relações de parentesco), que são instituições que regulam a estrutura de autoridade. São permanentes e têm um caráter comunitário. E estruturas sociais organizadas que são intencionalmente formadas com objetivos específicos (ex. partidos e clubes), criando estruturas às quais os indivíduos se filiam. Não são permanentes e estabelecem relações interindividuais. A partir de três critérios – durabilidade, inclusividade e autoridade – Kuiper estabelece que laços comunitários naturais (ex. família e parentesco) e instituições (ex. matrimônio e Estado) têm estruturas pactuais, enquanto que as associações e as relações interindividuais têm estruturas contratuais. Logo, “o capital moral primário da sociedade é formado pela sociedade nas estruturas sociais mais duradouras e inclusivas” (p. 165).
Como se dá, no nível social, as relações entre essas estruturas? Dialogicamente, é a resposta de Dooyeweerd. Ao mesmo tempo que no curso da história se tem um processo de diferenciação entre as instituições que criam novas estruturas, há um entrelaçamento mútuo entre elas. A sociedade é, portanto, um “conjunto encáptico”, uma rede de entrelaçamentos de instituições, naturais ou criadas, e indivíduos. Por meio de uma correlação dinâmica existente nessa rede, estabelecem-se relações comunitárias e interindividuais, havendo reciprocidade e dependência entre si. É por meio dessa reciprocidade dialógica que há entre as diferentes esferas, permeadas pelo capital moral dentro das estruturas, que os vínculos são proliferados gerando integração, inclusividade e durabilidade. Práticas simbióticas, então, promovem união entre os atores sociais. Relações reciprocas e de mutualidade podem possibilitar uma comunidade moral. Mas, com base em quê?
O contrato social (cap. 7), base do liberalismo moderno, não é suficiente para gerar vínculos fortes, estáveis, recíprocos e duradouros em uma sociedade. Um contrato tem por natureza sua temporalidade, exclusividade (não inclui aqueles que não se enquadram nos moldes do contrato vigente), não solidariedade, e instabilidade (termos podem ser renegociados). Kuiper defende o pacto como um paradigma mais adequado. O pacto social combina confiança social e institucional. Essa relação pactual parte do todo, é aberto e universal, considera os laços naturais entre as pessoas, aceita o outro como pessoa e promove reciprocidade. É preciso uma perspectiva transcendental, isto é, reconhece-se que sua fonte não é a vontade dos indivíduos, mas de Deus, pois a autoridade governamental é derivada.
Kuiper passa a tratar como esse pacto social possibilita o estabelecimento de um capital moral que busca o bem comum (cap. 8). A família deve ser percebida como a base e modelo para uma comunidade moral. É preciso que haja uma certa relação de promessa (comprometimento com o outro) no nível social como há no nível familiar. Apesar dos diferentes elementos que constituem as relações interindividuais no âmbito da família – entre pais e filhos (autoridade hierárquica), entre irmãos (relação horizontal), e entre amigos (compromisso moral) – é preciso que haja uma comunicação de comprometimento com o outro nos vínculos sociais.
Para isso (cap. 9), o Estado pode ter um papel importante na produção de capital moral. O ente estatal pode agir por meio da retribuição, e na promoção e incentivo da ética e moral social. Deve proteger a lei e a vida, emprenhar-se na harmonização das esferas sociais, e considerar e representar o interesse de todos os cidadãos. Ao derivar sua autoridade da lei, exercendo seu poder legítimo por meio dela, pode atribuir certos direitos e incentivos indutores que conduzam os indivíduos e comunidades ao bem comum.
Diferente de uma visão pessimista sobre a existência de uma pluralidade social que leva a um reducionismo da vida social (cap. 10), o Estado deve conservar uma pluralidade estrutural, não agindo de forma totalitária no apagamento das diferenças entre as esferas. Após uma crítica geral a Althusius, Kuyper e Dooyeweerd, por não oferecerem uma perspectiva na interação entre vínculos e comunidades e na não definição de uma perspectiva para o bem comum, Kuiper se apropria da reflexão do comunitarista Michael Walzer para sugerir que é preciso, através da fomentação do capital moral, criar vínculos por meio de promessas – comprometimentos mútuos e recíprocos entre os indivíduos.
Para alcançar esse objetivo (cap. 11), o autor propõe que é preciso resgatar os papéis da civilização e religião (crenças fundamentais de uma sociedade) na criação do capital moral. Kuiper reflete que a fragmentação social levou a uma perda da capacidade de se fazer e manter promessas. Isso representa um abandono civilizacional, isto é, o abandono da tradição moral fundamentadora da sociedade. Como primeiro a civilização adota valores e depois os positiva, o abandono das crenças fundamentais (religião) que fundam a civilização representa a quebra dos compromissos morais.
É por isso que, já no Epílogo, o autor sugere a necessidade de uma ética solidária, prática, que possibilite mais confiança interpessoal e institucional, criando-se capital moral a partir do nível local para os níveis superiores e visando-se ao bem comum. Kuiper faz um chamado de humanidade à solidariedade social.
Essa obra, sem dúvidas, representa um marco nas discussões sócio-políticas no Brasil. Em um ambiente de polarização ideológica (liberais-socialistas) cada vez mais acirrado, Kuiper nos lembra de que essas leituras são reducionistas, frágeis e excludentes. É preciso de uma nova ética não individualista e não estatista. E nós, como sociedade e como indivíduos, precisamos lembrar que pecamos ao ter uma postura tão autocentrada que gera distanciamento e rupturas, mas nunca comprometimento moral.
Anderson Barbosa