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Se ao menos Francisco fosse Lutero! por Carl R. Trueman

Com o advento do documentário de Wim Wender sobre o Papa Francisco nos cinemas, as políticas do atual pontífice sem dúvida serão tema de um debate considerável e acalorado na mídia. Graças à história turbulenta da Igreja Católica Romana, analogias históricas são abundantes.

Uma dessas analogias frequentemente proposta é a entre o Papa Francisco e Martinho Lutero, e é fortalecida pelos comentários positivos ocasionais de Francisco sobre a vida e obra do reformador. A semelhança é tão próxima que, na visão de alguns, que foi a base para uma divertida piada de April Fool’s em 2017, divertida justamente porque ela tinha certa credibilidade.

Mais recentemente, o L’Espresso veiculou um artigo fazendo uma comparação entre Bergoglio e Lutero, soando um alarme sobre o que o autor via como as tendências genuinamente luteranas do papa e suas implicações para a Igreja Católica Romana e a civilização ocidental.

Como um protestante por convicção, e às vezes um comentador simpático de Lutero, eu queria que o L’Espresso estivesse certo na sua interpretação de Francisco como estando na tradição da Reforma de Wittenberg. Um avanço, por exemplo, em direção à justificação pela graça mediante a fé seria muito desejável. Mas eu temo que não seja o caso. Embora eu creia que o papa atual possua um análogo do século dezesseis, ele não é o bom Doutor. É alguém bem pior: Desidério Erasmo.

Em seu famoso embate em 1525, Lutero e Erasmo cruzaram espadas sobre a questão da escravidão da vontade. O conflito não foi somente entre duas noções diferentes da capacidade humana para a salvação, mas também entre dois estilos diferentes de cristianismo. O cristianismo de Lutero era acima de tudo assertivo e dogmático. O evangelho foi constituído por Lutero por alegações doutrinárias sobre o que Deus tinha feito em Cristo na história pelo seu povo.

O centro do argumento de Erasmo, em contraste, era que a Bíblia não era clara sobre questões teológicas chave, de modo que uma atitude de humildade epistemológica (colocando positivamente) ou ceticismo (colocando mais negativamente) era apropriada. A ambiguidade da Bíblia impulsionava a importância de uma Igreja infalível, já que alguém precisava ser capaz de interpretar a Escritura autoritativamente.

Esse argumento dificilmente escandalizante para católicos. John Henry Newman faria um argumento semelhante no século dezenove. De fato, foi em parte a humildade epistemológica de Newman que o levou da Cantuária a Roma. Mas a deferência de Newman a uma Igreja infalível surgiu da sua convicção de que o cristianismo era uma religião de dogmas. Ele demandava uma autoridade para definir esses dogmas que, somente com a sua Bíblia, ele nunca poderia estabelecer com certeza.

Em contrapartida, o ceticismo de Erasmo era parte de uma abordagem bem diferente à fé cristã, uma que priorizava a ação prática em vez da asserção dogmática. Essa é a visão do cristianismo exposta no seu Manual do Soldado Cristão. Articulando uma cristologia exemplarista (enfatizando Cristo como um exemplo prático a ser seguido), o Manual minimiza a precisão dogmática e enfatiza as obras de uma piedade simples e prática. Impaciente com os debates dos escolásticos medievais, Erasmo argumentou que o cristianismo mais poderoso e persuasivo era o que Cristo passou aos seus seguidores: o amor humilde a Deus e ao próximo, expresso num cuidado simples e prática pelos outros. O dogma para Erasmo parece mais ou menos irrelevante e frequentemente divisivo. Se a lógica de Newman era “o cristianismo é, na essência, dogmático; portanto, precisamos de uma autoridade definir o dogma para nós”, Erasmo considerava que “o dogma é de pouca relevância; então vamos confiar na Igreja e continuar sendo gentis com os outros”.

Há muitas formas de dividir as várias tradições que reivindicam o nome de cristão. Uma delas é a divisão clássica entre católico romanos e protestantes sobre a questão da autoridade. Uma distinção mais sutil é entre os que consideram o cristianismo como fundamentalmente dogmático e os que o consideram essencialmente pragmático. Tendo em vista o último, podemos argumentar que Lutero e Newman estão do mesmo lado. Eles ao menos concordavam que a fé cristã era dogmática e que a questão da autoridade era de central importância por essa razão.

Em contrapartida, a visão de Erasmo parece consonante com a do papa Francisco. O papa tem uma predileção clara em favor dos pobres. Ele tem manifestado a sua preocupação com os marginalizados e os desfavorecidos. A sua abertura para aqueles que a sociedade sofisticada considera excluídos é evidente. Essas atitudes são o que tornam o seu papado tanto intrigante quanto atraente. “Ore e faça o bem” parece ser um bom resumo da sua abordagem à fé cristã. Mas em questões teológicas e dogmáticas, Francisco parece desinteressado pelas sutis distinções e asserções diretas que caracterizam o pensamento católico tradicional. A vagueza da sua abordagem ao ensino da Igreja sobre o divórcio parece ser um exemplo pronto. O dogma pode ser importante para ele, mas provavelmente não tão importante quanto o amor — e ele vira, é claro, um conceito mais ou menos nebuloso quando se desassocia do dogma.

Para colocar na linguagem do teólogo presbiteriano J. Gresham Machen: a ortodoxia cristã e o liberalismo cristão não são duas formas de uma única religião. Um é cristianismo, o outro não é. Machen considerava o catolicismo ortodoxo cristianismo, embora uma forma bem imperfeita dele, enquanto que ele considerava o presbiterianismo liberal paganismo. Um assevera a natureza sobrenatural da fé fundada na história e agora manifesta em asserções doutrinárias; o outro vê a fé como uma coisa psicológica e prática.

É por isso que os católico romanos ortodoxos deveriam se preocupar menos com a semelhança atual do papa com Lutero e mais sobre a sua semelhança com Erasmo. Debater o conteúdo de dogmas particulares é uma coisa; debater a importância do dogma em geral é outra bem diferente. No primeiro caso, há uma esperança de que a verdade irá prevalecer; no segundo, há um perigo de que a verdade se tornará irrelevante. E um cristianismo em que a verdade dogmática é irrelevante não é cristianismo, nem mesmo no sentido mais fraco e atenuado da palavra.

Original: If Only Francis Were Luther!

Traduzido por Guilherme Cordeiro.